Prêmio Carioca de Contos 2025: Chance Imperdível para Novos Autores
Nesta postagem o escritor, músico e poeta Everton Cidade entrevista Dominga Menezes e Gilson Camargo. Eles são os autores do livro do ano de São Leopoldo. No ano em que se comemora o bicentenário da Imigração Alemã no RS, "Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã" apresenta um contraponto à narrativa oficial, destacando o papel dos imigrantes alemães e reconhecendo a contribuição significativa de indígenas e negros na região do Vale dos Sinos.
Segue ainda um texto sobre a obra com Geovane Lacerda.
Dominga – A ideia faz parte de uma pauta que nos chama a atenção desde a década de 1990 e que, enquanto jornalistas, sempre nos mobilizou, a começar pela historiografia dos primórdios da imigração que repete de forma reiterada a versão do colonizador que chegou aqui construindo tudo e excluindo a presença e a contribuição dos povos originários e demais grupos étnicos que já viviam por aqui. Essa inquietação coincidiu com o surgimento de novas publicações e pesquisas acadêmicas, a partir do 2000, sobre a presença indígena e negra na região do Vale do Sinos antes da chegada dos imigrantes.
O livro confronta a historiografia oficial e os achados dos historiadores pioneiros com as investigações acadêmicas mais recentes de pesquisadores que foram aos arquivos buscar provas documentais que mostram que a região já era habitada por indígenas e negros escravizados e imigrantes portugueses. Fizemos o contraponto entre esses dois mundos, chegando a uma sucessão de narrativas que foram sendo vetadas pela história oficial e pouco exploradas pela literatura.
Gilson – A proposta do livro foi contemplada em 2022 pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Estado da Cultura do RS, que financiou a pesquisa e todas as fases de produção do livro. Em síntese, Invisíveis é um livro-reportagem que se propõe a investigar a fundo, dentro dos limites e das possibilidades do jornalismo, esse passado forjado por uma história mal contada, etnocentrista, excludente e marcada pela violência, tudo isso tem ainda um impacto muito grande sobre a identidade dos leopoldenses. Estamos falando não só do passado, mas do racismo e do preconceito que ainda permeiam a sociedade e as relações de poder nesse país.
Dominga – Foram 18 meses de muita leitura e consultas a pesquisadores, historiadores pioneiros e contemporâneos, além de entrevistas com representantes de entidades dos movimentos negro e indígena. Além da pesquisa bibliográfica o livro traz entrevistas com pessoas que participaram ou acompanharam esse processo de desenvolvimento de São Leopoldo, um município que por muito tempo foi e ainda é refém dessa pesada e ilusória herança de “Berço da Colonização”.
Gilson – O município mudou muito nas últimas décadas graças ao surgimento da Secretaria de Cultura que trouxe políticas públicas de inclusão social e racial e de reconhecimento à diversidade de culturas para além dessa germanidade – que ainda exerce uma grande influência sobre os capilés.
Dominga – Não esperávamos reações negativas, mas tínhamos claro que o livro poderia ser alvo de uma reação de negação, por entendermos a força das narrativas impostas por mais de dois séculos. Uma tradição forjada na repetição de mitos que ainda está muito presente na memória de descendentes dos imigrantes e até mesmo de quem veio morar no município e foi convencido da versão contada ao longo desses 200 anos. Por outro lado, há também aqueles que se sentem representados, se identificam e reconhecem no livro uma espécie de reparação. Nos lançamentos e rodas de conversas sobre a obra, muitos soltaram a voz pra dizer que o livro traz uma carga muito forte de antirracismo, de reconhecimento a outras culturas e religiões e estimula o sentimento de pertencimento. De um modo geral, ninguém censurou ou criticou o livro abertamente. Houve silêncios, o que não deixa de ser uma forma de reconhecimento.
Gilson – Quando se propõe a questionar a hegemonia dessa narrativa que se impôs durante tanto tempo, de exaltação da germanidade e exclusão dos não germânicos, o livro faz o que pouca gente ousou até agora, ao menos pelo que consta, que é mexer com temas vetados localmente. Está no hino, na história e não se fala mais nisso costuma ser a reação de certas pessoas e setores mais zelosos dessa tradição e poderiam torcer o nariz ou receber muito mal essa proposta. Mas para nossa surpresa, não foi isso que aconteceu. Ao contrário, o livro foi e ainda é bem recebido. Validado por seu conteúdo, que é amplamente referenciado na historiografia e que não deixa de reconhecer e reverenciar o valor e a contribuição dos imigrantes. Só que faz isso sem excluir os demais grupos étnicos.
Dominga – O livro foi lançado no dia 16 de abril, três meses antes das festividades do bicentenário, que acabaram não acontecendo por conta da enchente, mas houve muita procura pela obra por estudantes, professores e historiadores. O lançamento na Biblioteca Vianna Moog ganhou ares de celebração e congraçamento interracial, digamos, com muitas manifestações de lideranças negras e indígenas, professores, historiadores. Além das atividades em sala de aula sobre os 200 anos da cidade, percebemos que o livro também despertou o interesse do público em geral pela abordagem apresentada: foi direto ao ponto com um recorte ousado, ao questionar o lugar de indígenas e negros na história da Imigração.
Dominga – Acreditamos que o livro foi além do objetivo esperado. Fomos criteriosos na escolha das referências bibliográficas, na linguagem utilizada para que o livro se tornasse atraente ao público de todas as idades, além de abrir fendas para que essa história não termine aqui.
Gilson - Apesar de ser uma pequena editora, a Carta tem um histórico de ousadia e projetos editoriais competitivos nesses 21 anos de atuação. Essa história começou em 2003, com a criação da revista Carta Capilé, uma publicação mensal que revolucionou a forma de abordar a cultura, a política, movimentos sociais, juventude, comportamento. A própria história do apagamento de indígenas e negros na história da imigração foi pauta em várias edições da revista.
Dominga - A partir daí começamos a publicar livros de autores independentes nos mais diversos gêneros. Já são 33 títulos publicados e temos pelo menos dez projetos em andamento para publicação no próximo ano, que contemplam os mais variados gêneros literários e expressam um movimento da editora no sentido da diversidade, da inclusão e do incentivo aos novos autores e autoras.
Dominga Menezes, com 62 anos, acumula mais de três décadas de experiência em jornalismo diário, assessoria de imprensa parlamentar e na gestão de projetos de comunicação social e empresarial.
Gilson Camargo, aos 61 anos, atua como jornalista desde 1986, com passagens por redações como Diário do Sul, Grupo Sinos, Zero Hora, O Sul e Correio do Povo, além de trabalhos em assessorias de imprensa. É o editor executivo do Jornal Extra Classe, tendo recebido nove prêmios de jornalismo.
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O texto a seguir foi escritor por Geovane "Tuko" Lacerda, que já foi baixista nas bandas A Sorrowful Dream e Coquetel Hacienda, além de força performática não-individualizada na Macedusss. Possui graduação em História e mestrado em Educação. Atualmente é baixista da Viana Moog, doutorando em Educação e professor na rede pública do RS.
"Tratar de invisibilidades e silêncios históricos nunca é fácil, temas que nos estimulam (com uma boa dose de razão) ao grito de “j’accuse” emocional, a um discurso-manifesto. O livro “Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã”, de Dominga Menezes e Gilson Camargo, sem dúvida aponta de forma pertinente para as injustiças históricas, mas o faz serenamente e priorizando o rigor. Lançado apropriadamente no momento em que se comemora o bicentenário da imigração alemã, o livro tem como prioridade questionar o imaginário corrente de que “só a natureza viu chegar” (tal qual o hino da cidade afirma) os imigrantes alemães de 1824.
A partir daí aponta momentos em que a população não-branca de São Leopoldo sofreu efeitos de invisibilização. Pode-se dizer que apontar elementos diversos na história de São Leopoldo não é propriamente novidade: os relatos históricos de São Leopoldo, em geral, falam sobre os kaingangs que se relacionavam com o território e trazem detalhes da Real Feitoria do Linho Cânhamo (várias dessas referências, inclusive, estão citadas em “Invisíveis”). Mas o grande salto interpretativo e pioneirismo do livro é colocar o foco na questão própria trajetória de invisibilidade, buscar ao máximo elevar os excluídos do “mito da germanidade” à condição de também protagonistas.
Além disso, tal como Andrea Petry Rahmeier define na epígrafe, a obra é um livro-reportagem. Isso significa que o já citado rigor com que o tema é tratado dispensa ao leitor uma familiaridade com os ritos específicos da escrita acadêmica. O rigor, nesse caso, consiste em apresentar, de forma fluida, as pesquisas acadêmicas que validam a escolha narrativa do livro, gerando uma abordagem dinâmica e que prende a atenção. E, sendo um livro-reportagem, a metodologia varia, sempre trazendo contribuições pertinentes independente da forma com que o tema é abordado: narrativas embasadas, imagens, entrevistas, às vezes entrelaçando os diferentes métodos para chegar ao seu objetivo.
Entre os autores mencionados na obra parece haver uma distinção entre os que orbitam em um mito da germanidade e os críticos a esse mito. Essa distinção consegue estabelecer uma linha ética entre o necessário posicionamento questionador ao mito e o entendimento de que há influências do contexto em qualquer obra, efeitos do tempo sobre cada interpretação. Um grande mérito, já que aponta aquilo que os textos mais recentes não deveriam de forma alguma repetir, mas mantém o respeito pelas contribuições de diversos autores do século XX.
O livro também assume a tarefa de conciliar, em sua estrutura, duas propostas cronológicas ao mesmo tempo: em primeiro lugar, formula um resumo jornalístico (muito bem embasado e referenciando fontes essenciais) da fundamentação histórica para determinar a existência, e consequentemente invisibilidade, da população negra e indígena na trajetória de São Leopoldo. Mas, ao lado disso, a obra explica o retorno ao tema, especialmente a partir do século XXI, pela própria comunidade leopoldense. Ou seja, existem duas histórias aqui: a que nos coloca a par de personagens históricos como Luís Bugre e a que explica a transição do “Dia do Colono” para “São Leopoldo Fest”. Chega a alcançar datas muito próximas de nós, como o desfile de carnaval de 2024, na passarela Tom Astral, a partir da escola Império do Sol.
Concluindo, creio que o grande mérito do livro é que o formato cumpre uma função prática: ele concede argumentos viáveis para se pensar a invisibilidade dos não brancos na narrativa histórica de São Leopoldo de uma forma que se afasta da leitura pesada comum ao academicismo (o que, por sua vez, poderia restringir o número de leitores), mas sem dispensar as pesquisas pertinentes envolvendo o tema. Terminando o livro, o leitor atento estará preparado a questionar manifestações de um mito que traz, entre seus efeitos, o racismo e o epistemicídio aos espaços cotidianos.
Foucault falou, em uma conversa informal ocorrida em 1978 sobre livros-bomba.
Não que sejam propriamente livros violentos, mas que abalam estruturas e, ao final, produzem fogos de artifício. É nesse sentido que “Invisíveis” é um item indispensável a ser incluído na caixa de ferramentas da historiografia capilé. Ele se compõe como instrumento de crítica poderoso para difundir a existência da diversidade em São Leopoldo e denunciar as tentativas de invisibilização através de um mito que, por muito tempo, limitou o passado da região à germanidade.
Ao mesmo tempo, parece trazer uma perspectiva de um novo tempo possível, uma utopia a ser buscada com rigor: uma explosão festiva de luzes em diversidade tornando a cidade de São Leopoldo mais sincera e coerente sobre si mesma."
CAMARGO, Gilson; MENEZES, Dominga. Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã. São Leopoldo, RS: Carta Editora, 2024
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