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Leia grátis o conto "UATIZAPE" do livro "Ofertas Imperdíveis", de Maximiliano da Rosa

O conto abaixo foi publicado originalmente no livro "Ofertas Imperdíveis", finalista do Prêmio Uirapuru 2021 e publicado pela editora "Folheando". Cada umas das narrativas curtas que compõe a obra tem seu próprio arco e personagens independentes. No entanto, as histórias estão conectadas, em maior ou menor grau, por um fio diáfano: a pandemia global que começou lá em 2020 e ceifou centenas de milhares de vidas no Brasil. Alguns dos contos foram escritos no começo desta e trazem nas estrelinhas a desconfiança em relação o futuro.  Outros, concebidos durante as fases mais difíceis da quarentena e do isolamento, atestam o desamparo e o desconforto das pessoas antes da chegada das vacinas.

Leia grátis o conto "UATIZAPE" do livro "Ofertas Imperdíveis", de Maximiliano da Rosa

"UATIZAPE

Conto de Maximiliano da Rosa

 

Eu, velho, sentado diante do sofá assistindo novelas repetidas. Eu, quieto, quase dormindo. Estômago roncando. Ouço o baque, a porta que abre, sons que vem da rua, e a voz delgada que reverbera. Sandro, meu neto. Abro os olhos, tateio em busca do maldito celular. Confiro as horas, olhos cansados, no aparelho caído entre as almofadas coloridas. São pra lá de nove da noite; chega do serviço cada vez mais tarde, o coitado. Constatação salpicada de obviedade. Ele, que trabalha de motorista de aplicativo. Ele, que entra, máscara no rosto, e avisa: cheguei, vô. Ele, candura explícita e latente. Mal termina a frase, corre pro banheiro. Vai direto tomar banho, trocar de roupa, tem medo do vírus. Mais por mim do que por ele. Tô no grupo de risco. A gente se cuida, o que mais pode fazer? Vacina, só Deus sabe quando chega. (Presidente demorou pra comprar. Vi na tv.) A gente se cuida porque é só o que nos resta neste tempo de incertezas. Se lambuza de álcool gel, lava bem as mãos, só sai de casa usando máscara, essas coisas. Meu neto e eu. Não é difícil. Sou viúvo, ele é solteiro. Dois náufragos na ilha do isolamento urbano, meio que à deriva na vida. Ele e eu. Eu e ele, ninguém mais. Me ergo. Levo meu corpo lerdo e minhas dores crônicas até a pequena cozinha, coloco o prato no micro-ondas, aperto o botão do "play" e vou bater na porta do banheiro; pergunto se ele tá com fome. Tô, Sandro logo responde. Pergunto outra coisa: se pode ser miojo. Pode, vô. É um bom garoto. Sem frescuras pra comer. Não tinha outra coisa mesmo, ele sabe. A grana tá curta. Ele sabe, é ele mesmo quem sai e faz as compras. Eu não saio de casa faz mais de ano, acredite. Sandro vai no mercado, na farmácia, pagas as contas. Bom garoto. Também não demora no banho. A gente tem que economizar água e luz. Ele sabe. Senão, não dá. Não, não demora. Sai cerca de quinze minutos depois, vestindo seu roupão surrado, e se senta na mesa da cozinha. Tiro o prato do micro-ondas, coloco na frente dele, que começa a comer em silêncio. Me sento com ele. Passo o dia sozinho, quero conversar. Algo não vai bem. Hoje. Indago. Ele não responde. Repito. O que foi? Te incomodou no serviço? Brigou com a namorada virtual? Ele não quer falar, prefere deixar pra lá. Não é nada, murmura, entre uma colherada e outra. Não desisto de querer saber. No fim, desembucha. Recebeu pouca estrela de um cliente, reclamação, coisa assim. É isso o que ele diz. Entendo, digo eu. Mas não. A verdade é que não sei nada do funcionamento do emprego dele. Mal sei falar no celular. Uso o tal do "uatizape" bem porcamente, me atrapalho com os botões, escrevo tudo errado, o tal do corretor ortográfico mais atrapalha que ajuda. Digo que entendo por que não sei o que mais poderia dizer. Só sei que não é bom esse negócio de avaliação, estrelas etc. No meu tempo era orelhão e táxi. As coisas eram mais fáceis. Olho no olho. A gente usava o dedo pra discar ou fazer sinal pro carro ou ônibus parar. Bem simples. Agora é diferente. Usa o tal de aplicativo, que vem buscar em casa. Parece útil, só não sei como funciona. Acho complicado, desnecessário. A tecnologia até que tem suas vantagens, sou obrigado a admitir. Converso com minha filha, que mudou pra longe com o marido e os outros filhos, por videochamada. Que nem nos filmes. Consigo até ver meus outros netos. (O Sandro quis ficar comigo, e a mãe concordou. É um bom garoto.) Até aí tudo bem. Só que esse tal de celular é uma coisa de doido. Ficam ligando toda hora querendo saber se eu quero fazer empréstimo consignado. Já nem atendo mais. O pior, pior é o tal do vírus. O Sandro mandou eu me cuidar, não tocar em um tal de "linque" que mandam no uatizape. Morro de medo. Morro que me cago. Não quero pegar vírus nenhum pelo celular. Já basta o tal do corona. Se o celular fica doente, já era. F*. Enfim, esquece. Meu neto nem me olha, come quieto no seu lado da mesa, cabisbaixo. Distante. Me sinto sozinho. Pergunto se ele quer ver uma série depois da janta. Nem chega a responder. O celular dele, de repente, faz um som de sininho. Ele desliza o dedo pela tela, vê alguma coisa, mensagem, sei lá, e nem termina de comer. Se levanta logo em seguida. Estou bem na frente dele, faço cara de preocupado. Vejo algo em seus olhos. Não sei o que é. Seu rosto não me diz nada. Ele digita alguma coisa, em pé, depois, vai até o quarto, troca de roupa, volta. Sem levantar a cabeça, diz que tem que ir. Fazer uma corrida. Não gosto. Acho perigoso. É tarde, andam matando motorista por aí. Digo isso pra ele. Ainda mais em plena pandemia. Fazer o quê? Precisa trabalhar, não pode ficar em casa. Minha aposentadoria é uma m*, ele sabe. A mãe dele manda um dinheiro vez que outra pra ajudar. Mas é pouco. Não tem jeito. Ele tem que ir, e vai. Vai e eu fico. Sozinho. Sentado na cozinha. Um tempo. Pensamentos emaranhados. Volto pra sala depois de alguns minutos, pego o celular, abro o uatizape, vou no grupo que o Sandro fez pra mim. Amigos do bairro, da cancha de bocha etc. Volto a sentar no sofá. Fico ali, vendo as conversas. Só bobagem, foto de mulher pelada, piadinhas, figurinhas animadas. Nada sério. Pelo menos hoje ninguém entrou ainda pra dizer que morreu mais um velho de (...). (O grupo tá ficando cada vez menor. Quase toda semana é um que se vai.) Largo o aparelho, ligo a TV, coloco no William Bonner. Nem me dou conta, e já tô dormindo. Acordo, sei lá quanto tempo depois, sobressaltado. Tiros na televisão. Não sei se é notícia ou filme. Na dúvida, desligo. Confiro as horas, passa da meia-noite. Vou até o quarto do Sandro, bato na porta, chamo. Nenhuma resposta, meto o mão no trinco, abro, acendo a luz. Bagunça, cheiro de chulé, nenhum sinal do meu neto. Nenhum. É só um garoto. Um bom garoto. Começo a ficar preocupado, é tarde. As horas vão longas e espaçadas. Mando áudio pra ele. Quero saber que horas chega. Mando e espero. Fico de olho na tela do celular. Nada das setinhas ficarem azuis. Mando de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Meu peito dói. Dó tanto que acho que vou morrer. Mas não morro. Durmo e acordo só pra ficar sabendo que meu neto não volta mais pra casa. Morreu com um tiro certeiro enquanto tentava roubar o dinheiro de um caixa eletrônico com outros dois comparsas na madrugada."

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